segunda-feira, 11 de maio de 2009

A Perna Cabeluda - Raimundo Carrero


O repórter, apressado, nervoso, entrou na redação do jornal. Colocou o papel na máquina, mas estava de tal forma agitado, que não sabia como escrever. Percebendo sua indecisão, o editor procurou saber o que estava acontecendo.


Gago, voz presa na garganta, precisou de alguns segundos, ainda, para ordenar as palavras. “A perna cabeluda está em Olinda” disse esperando a reação do chefe. Uma pessoa fora agredida, levara três pernadas no pescoço, uma na barriga, sangrando fora socorrido por populares e estava, agora, no Hospital da Restauração. E não fora a única vítima. Invadira também a residência de uma bela moça, não respeitara pai nem mãe, e com uma rasteira derrubou-a, no meio da sala, diante dos olhos estarrecidos da família, que não sabia como reagir, praticou agressões.


Foi um corre-corre na rua, gente chamando a polícia, mulher chorando abraçada com o marido, irmãos e parentes, as mais piedosas e religiosas rezando nos pés dos santuários. A pobre moça, coitada, gemia, gritava, pedia proteção. Não era fácil, no entanto, agarrar a perna. Ágil, saltava para todos os lados. Teve um rapaz, herói anônimo, que ainda pulou a janela da residência, mas nada pôde fazer porque logo recebeu uma violenta pernada na cabeça, caiu sangrando, batendo quase morto.


A perna cabeluda somente se deu por vencida quando foi escutado o gemido do carro da polícia. Saiu correndo pela porta dos fundos, meteu-se numa rua estreita, atravessou um beco e desapareceu num matagal. Os homens da rua, penalizados com o choro da moça, formaram logo uma “coluna”, armaram-se de facas, revólveres, pedaços de pau e saíram em sua perseguição . Nessa hora os policiais já vinham chegando.


Juntaram-se aos guerreiros, saíram em busca da perna criminosa. Foi que um guerreiro mais afoito, que corria em frente de todos, armado com um revólver, uma peixeira, e um canivete, deu um grito, caiu sangrando, o corpo todo dolorido. No escuro não pôde ver a perna cabeluda escondida atrás de uma moita. Vingativa, não apenas deu-lhe uma rasteira, como chutou sua boca e ficou pulando sobre seu peito.


Os outros homens correram em seu socorro, mas havia a surpresa: confundindo-se com a escuridão, a perna pulava mais que saci-perêrê, agilíssima, de um lado para o outro, cai aqui, cai aculá “ela está aqui”, “ela está ali”, um caindo por cima do outro, cabeça lascada, braço quebrado, barriga rasgada. Pior foi quando começou a chover. Trovões, relâmpagos, muita água, sangue correndo na lama.


Confundindo-se, os guerreiros agrediam-se, esmurravam-se. Um fuzuê dos diabos. Quando a perna decidiu desaparecer, ouviu- se uma gargalhada medonha, três soluços e um arroto. Derrotados, os guerreiros retornaram para casa, feridos, alguns em macas, os policiais jurando que ela seria presa ainda aquela noite, todo contingente seria acionado, não haveria escapada. Quando entraram na rua iluminada, as mulheres esperando nas janelas - umas chorando, outras conversando agitadas -, parecia uma procissão de desgraçados.


O socorro foi logo providenciado. Mesmo no carro da polícia, os mais feridos foram conduzidos para o hospital. Parecia o fim do mundo, correu um boato na rua que era o início do apocalipse, era preciso começar a rezar com muito fervor, pois uma multidão de estrelas já se precipitavam do céu e uma legião de mortos vestiam os seus corpos para sair dos túmulos, cobrando promessas aos vivos.


As moças choravam, os rapazes corriam para ir à igreja, queriam se confessar. Teve cabeludo que raspou o cabelo, afrouxou as calças, e vestiu o terno. As mulheres cobriam as barriguinhas, e encompridavam os vestidos. Mas foi que a agitação cresceu mais ainda, quando já se imaginava que era chegado o momento de dormir sossegado. Os gritos de uma mulher foram escutados, misturados com uma pancadaria, voz de homem furioso berrando. De repente, a mulher foi atirada na rua, bateu com a testa no chão, quebrou a cabeça.


O homem furioso apareceu com um revólver na mão. Foi logo contando: chegara em casa cansado, louco para dormir, e quando entrou no quarto, o que viu, ao lado da mulher, estava deitada a perna cabeluda, morrendo de rir. Perdeu a paciência, puxou a mulher pelos cabelos, esfregou-a na parede. E a perna gargalhava, dava saltos em cima da cama, dançava samba, rumba e frevo. Insatisfeita, ainda deu-lhe um chute na barriga, e saiu correndo. Ninguém mais podia se conformar, era mesmo o fim do mundo.


Mesmo os mais afoitos não se decidiam a perseguir a malvada. Socorreram, no entanto, a mulher ferida. Vários carros da polícia apareceram para proteger o povo da rua. Os policiais traziam metralhadoras, canhões, revólveres, gás lacrimogêneo, o diabo. Armaram esquemas, trancaram as ruas, esquinas, vielas. Desistiram, porém, quando surgiu a notícia, ninguém sabe quem deu: a perna cabeluda estava pintando o diabo em Boa Viagem.

3 comentários:

  1. As Estórias ou Histórias de antigamente eram muito mais criativas e assustadoras, mas ainda assim menos agressivas que as de hoje em dia, muito bom texto e recordação, valeu mesmo e parabéns pela iniciativa do Perto de casa.

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  2. Belo Texto, uma historia linda de uma época interessante onde os homens tratavam o progresso de uma forma mais romântica. Parabéns ao autor deste belo texto.

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  3. Texto magnifico de um Escritor e Jornalista que mantém viva a chama da arte em Pernambuco, no Brasil. Bom dia.

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